quarta-feira, 7 de maio de 2025

O olhar que cria o mundo

No princípio era a dança,

invisível, indivisa,

um passo dado sem chão,

um sopro que não sabia ainda

ser som.

 

Não havia fenda, nem escolha,

nem medo da escolha.

Tudo pulsava em simultâneo,

em harmonia secreta,

em silêncio fértil.

 

Mas um dia, um olho abriu-se.

Um olhar quis saber.

E ao perguntar por onde,

escolheu o como.

E ao medir, limitou.

E ao vigiar, matou a dúvida

e com ela, a liberdade.

 

Hoje, erguemos paredes sobre paredes,

rastreando partículas e pensamentos.

Queremos segurança, precisão,

uma só verdade a brilhar na ponta do dedo.

Mas esquecemo-nos do palco.

Esquecemo-nos do véu.

Esquecemo-nos que tudo vibra diferente

quando ninguém está a julgar.

 

Repara nas guerras:

tentativas cegas de obrigar o mundo

a passar por uma só fenda.

Repara nas notícias:

colapsos do invisível transformado em ruído.

Repara em ti:

cada gesto teu observado muda de cor.

E o coração, quando olhado demais,

encerra-se como flor ofendida.

 

Talvez seja tempo de reaprender

a ver sem interrogar.

A dançar sem registar.

A amar sem exigir explicação.

 

Porque o mundo é feito daquilo

que o nosso olhar convoca.

 

E se olharmos com medo,

veremos monstros.

Se olharmos com ganância,

veremos presas.

Mas se olharmos com espanto,

com entrega,

com humildade diante do mistério,

quem sabe o que pode surgir?

 

Talvez o chão se transforme em céu.

Talvez a partícula se lembre de ser onda.

Talvez sejamos, de novo,

mais do que escolhemos ser.

 

Não é a ciência que mente.

É o nosso desejo de controle

que distorce o espelho.

 

Mas ainda podemos aprender com a fenda:

o invisível não desapareceu,

apenas se esconde de olhos que querem domínio.

 

Olha com ternura.

Com reverência.

E verás:

o universo dança ainda.

À espera de quem saiba ver

sem ferir.

Sem medir.

Sem prender.

 

À espera

de um olhar

que não corte,

mas crie.

 

(Vivemos tempos em que tudo é vigiado, medido, dissecado, como se só existisse aquilo que conseguimos controlar.

Mas o velho experimento da dupla fenda ensina-nos outra coisa: que o mundo muda conforme o modo como é observado.

Que há realidades que só existem quando ninguém está a julgar.

Este poema não é sobre ciência.

É sobre nós.

Sobre o que perdemos quando deixamos de ver com espanto.)

 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário