quarta-feira, 7 de maio de 2025

Debaixo da pele

Valorizamos a epiderme

como se fosse tudo:

o brilho dos olhos,

a geometria do rosto,

o penteado ensaiado para o espelho,

as rugas que tememos

mais do que a morte.

 

Mas sob a pele,

nesse escuro templo sem janelas,

há legiões em marcha,

há corações que não desistem,

há fígados cansados

a limpar os excessos

que lhes oferecemos como festa.

 

Há rins a filtrar mágoas,

pulmões a insistir no ar sujo

dos nossos dias sem pausa,

intestinos a digerir não só alimentos,

mas ansiedades, silêncios e pressas.

 

E nós,

senhores vaidosos da nossa própria imagem,

esquecemo-nos que o corpo

é muito mais do que aquilo que se vê.

É um exército sem voz

que nos ama em silêncio.

 

Cuidamos do contorno

e esquecemo-nos da causa.

Limpamos o espelho,

mas não ouvimos a casa.

 

Ainda assim,

o corpo permanece.

Fiel.

Perdoando-nos.

Curando-se.

Protegendo-nos

até ao dia em que, por fim,

já não consiga.

 

E talvez nesse dia,

tarde demais,

compreendamos

quem verdadeiramente somos

para além da pele:

uma casa sem paredes,

um canto antigo no silêncio,

um lume escondido

que sempre soube

amar-nos.

 

 

 

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