Valorizamos a epiderme
como se fosse tudo:
o brilho dos olhos,
a geometria do rosto,
o penteado ensaiado para o espelho,
as rugas que tememos
mais do que a morte.
Mas sob a pele,
nesse escuro templo sem janelas,
há legiões em marcha,
há corações que não desistem,
há fígados cansados
a limpar os excessos
que lhes oferecemos como festa.
Há rins a filtrar mágoas,
pulmões a insistir no ar sujo
dos nossos dias sem pausa,
intestinos a digerir não só alimentos,
mas ansiedades, silêncios e pressas.
E nós,
senhores vaidosos da nossa própria imagem,
esquecemo-nos que o corpo
é muito mais do que aquilo que se vê.
É um exército sem voz
que nos ama em silêncio.
Cuidamos do contorno
e esquecemo-nos da causa.
Limpamos o espelho,
mas não ouvimos a casa.
Ainda assim,
o corpo permanece.
Fiel.
Perdoando-nos.
Curando-se.
Protegendo-nos
até ao dia em que, por fim,
já não consiga.
E talvez nesse dia,
tarde demais,
compreendamos
quem verdadeiramente somos
para além da pele:
uma casa sem paredes,
um canto antigo no silêncio,
um lume escondido
que sempre soube
amar-nos.
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