quarta-feira, 7 de maio de 2025

À frente do espelho

Houve um dia em que olhei

e vi-me a desaparecer.

 

O espelho não mentia:

o riso já não era leve,

os olhos já sabiam mais

do que deviam saber.

E eu, tão pequeno ainda,

pressenti o adeus.

 

Nesse instante,

não gritei.

Mas chorei como se estivesse a enterrar um mundo

que era meu.

 

Disse-te adeus,

meu menino,

não por te querer esquecer,

mas por saber que a realidade

ia ferir a tua pele de sonho.

 

E prometi-te: — lembras-te?

Que te levava comigo.

Que arranjaria um quarto dentro de mim,

com luz,

com terra para brincares,

com primaveras que ninguém pudesse roubar.

 

Hoje venho cumprir essa promessa.

Porque ainda estás cá.

Mesmo nos dias em que me arrasto,

em que me sinto velho,

vazio,

sem chama,

há em mim o teu calor tímido,

o teu espanto intacto,

a tua esperança sem nome.

 

Perdoa-me se nem sempre sou bom abrigo.

Se me perco em culpas,

em desejos gastos,

em fugas de mim.

 

Mas não deixei de te amar.

És a minha parte mais intacta.

A raiz que me liga ao que é limpo.

A luz que sobrevive ao tempo.

 

Fica.

Continua a morar em mim.

E se eu me esquecer outra vez,

bate à porta com os teus olhos abertos.

 

E eu saberei que ainda é possível

ser inteiro.

 

Amém.

 

 

 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário