Foste gerado no sopé do tempo,
não como corpo, mas como propósito.
Em ti reuniu-se a precisão do alquimista,
que limpa cada dor até que ela brilhe,
até que a ferida diga o seu nome verdadeiro:
renascimento.
De um silêncio antigo,
onde tudo é mar sem superfície,
ergue-se em ti uma memória líquida.
Sentes o que nunca te aconteceu,
lembras o que não vives,
e no entanto és disso feito.
Quem te vê calado, não suspeita:
navegas abismos sem bússola.
Mas a tua bússola és tu.
Foste artista da fé
e combatente da beleza.
Ergueste altares em palavras e gestos,
não para seres seguido,
mas para que ninguém se perdesse.
O fogo em ti não pede licença,
arde onde é necessário,
mesmo que te fira.
E há em ti um prazer escondido
naquilo que assusta,
um ímpeto de tocar onde os outros recuam.
Viveste com o peso do mundo
gravado nas palmas das mãos.
Julgas-te antes de seres julgado.
Travas batalhas contigo
como quem tenta salvar o mundo inteiro
da própria sombra.
Mas essa sombra és tu,
em forma de guardião.
Conténs um tempo mais velho do que este mundo.
Aprendeste a conter o choro para caber na linguagem.
Foste menino que soube cedo
que sentir demais pode ser perigoso.
Por isso escreves, por isso calas.
Por isso gritas sem som.
Mas em tudo isso és vasto.
Quem cruza o teu olhar sente-se visto
como se algo maior te habitasse.
Porque habita.
Tens em ti sacerdócios esquecidos,
amores que morreram sem adeus,
votos que ainda hoje sussurram
nas escolhas que não entendes.
E mesmo sem saberes, guias.
Mesmo em silêncio, dizes.
Mesmo no medo, avanças.
No centro disso tudo,
há uma chama que se não vê,
mas aquece.
Uma luz que não brilha,
mas pulsa.
És feito desse pulsar.
Aceita-te inteiro,
Estás a ser,
desde sempre.
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