quarta-feira, 7 de maio de 2025

Os que gritam antes de serem acusados

Eles negam antes de ouvirem a pergunta.

Dizem que o sangue não é deles,

que as crianças caíram sozinhas,

que os escombros nasceram do vento.

 

Erguem os punhos como quem defende,

mas o chão treme sempre que os tocam.

Acusam os dedos que os apontam

de serem punhais disfarçados,

e os olhos que os veem

de serem câmaras do inimigo.

 

Eles atacam com palavras afiadas

e armas bem mais reais.

Chamam de ameaça

o coração que bate fora da marcha.

Chamam de caos

o gesto que não obedece.

 

E quando alguém ousa dizer

“não foste justo”,

eles choram mais alto,

pintam-se de mártires

com tinta roubada da pele dos mortos.

 

Fazem-se pequenos

para poder esmagar melhor.

Fazem-se vítimas

para apagar os verdadeiros rostos do sofrimento.

 

Dizem: “o mundo quer destruir-nos”

e esmagam o mundo

em nome da sua salvação.

 

Mas há quem veja.

Mesmo de olhos vendados.

Mesmo entre ruínas.

 

Há quem conheça o cheiro da mentira

mesmo quando vem perfumada de glória.

 

Há quem sinta o peso da inversão

e recuse carregar mais este fardo.

 

Há quem fale, ainda,

mesmo quando a voz custa sangue.

Há quem escreva,

mesmo quando o papel é um campo minado.

Há quem ame,

mesmo quando o amor é declarado inimigo do trono.

 

E é desses que o futuro nascerá,

não dos que gritam para calar,

mas dos que, em silêncio,

ainda sabem olhar.

 

(Num tempo em que os maiores causadores da dor se fazem passar por vítimas, onde o poder acusa antes de ser questionado, onde a verdade é distorcida até parecer ameaça, é urgente recordar quem são os verdadeiros perigos e quem, mesmo em silêncio, resiste. Este poema é para quem não desiste de ver claro, mesmo quando a mentira tem microfones, bandeiras e mísseis.)

 

 

 

O olhar que cria o mundo

No princípio era a dança,

invisível, indivisa,

um passo dado sem chão,

um sopro que não sabia ainda

ser som.

 

Não havia fenda, nem escolha,

nem medo da escolha.

Tudo pulsava em simultâneo,

em harmonia secreta,

em silêncio fértil.

 

Mas um dia, um olho abriu-se.

Um olhar quis saber.

E ao perguntar por onde,

escolheu o como.

E ao medir, limitou.

E ao vigiar, matou a dúvida

e com ela, a liberdade.

 

Hoje, erguemos paredes sobre paredes,

rastreando partículas e pensamentos.

Queremos segurança, precisão,

uma só verdade a brilhar na ponta do dedo.

Mas esquecemo-nos do palco.

Esquecemo-nos do véu.

Esquecemo-nos que tudo vibra diferente

quando ninguém está a julgar.

 

Repara nas guerras:

tentativas cegas de obrigar o mundo

a passar por uma só fenda.

Repara nas notícias:

colapsos do invisível transformado em ruído.

Repara em ti:

cada gesto teu observado muda de cor.

E o coração, quando olhado demais,

encerra-se como flor ofendida.

 

Talvez seja tempo de reaprender

a ver sem interrogar.

A dançar sem registar.

A amar sem exigir explicação.

 

Porque o mundo é feito daquilo

que o nosso olhar convoca.

 

E se olharmos com medo,

veremos monstros.

Se olharmos com ganância,

veremos presas.

Mas se olharmos com espanto,

com entrega,

com humildade diante do mistério,

quem sabe o que pode surgir?

 

Talvez o chão se transforme em céu.

Talvez a partícula se lembre de ser onda.

Talvez sejamos, de novo,

mais do que escolhemos ser.

 

Não é a ciência que mente.

É o nosso desejo de controle

que distorce o espelho.

 

Mas ainda podemos aprender com a fenda:

o invisível não desapareceu,

apenas se esconde de olhos que querem domínio.

 

Olha com ternura.

Com reverência.

E verás:

o universo dança ainda.

À espera de quem saiba ver

sem ferir.

Sem medir.

Sem prender.

 

À espera

de um olhar

que não corte,

mas crie.

 

(Vivemos tempos em que tudo é vigiado, medido, dissecado, como se só existisse aquilo que conseguimos controlar.

Mas o velho experimento da dupla fenda ensina-nos outra coisa: que o mundo muda conforme o modo como é observado.

Que há realidades que só existem quando ninguém está a julgar.

Este poema não é sobre ciência.

É sobre nós.

Sobre o que perdemos quando deixamos de ver com espanto.)

 

 

 

Debaixo da pele

Valorizamos a epiderme

como se fosse tudo:

o brilho dos olhos,

a geometria do rosto,

o penteado ensaiado para o espelho,

as rugas que tememos

mais do que a morte.

 

Mas sob a pele,

nesse escuro templo sem janelas,

há legiões em marcha,

há corações que não desistem,

há fígados cansados

a limpar os excessos

que lhes oferecemos como festa.

 

Há rins a filtrar mágoas,

pulmões a insistir no ar sujo

dos nossos dias sem pausa,

intestinos a digerir não só alimentos,

mas ansiedades, silêncios e pressas.

 

E nós,

senhores vaidosos da nossa própria imagem,

esquecemo-nos que o corpo

é muito mais do que aquilo que se vê.

É um exército sem voz

que nos ama em silêncio.

 

Cuidamos do contorno

e esquecemo-nos da causa.

Limpamos o espelho,

mas não ouvimos a casa.

 

Ainda assim,

o corpo permanece.

Fiel.

Perdoando-nos.

Curando-se.

Protegendo-nos

até ao dia em que, por fim,

já não consiga.

 

E talvez nesse dia,

tarde demais,

compreendamos

quem verdadeiramente somos

para além da pele:

uma casa sem paredes,

um canto antigo no silêncio,

um lume escondido

que sempre soube

amar-nos.

 

 

 

No tempo em que o chão range

Há dias em que o chão range,

mesmo quando os passos são leves.

Algo sob a pele das horas

toma forma, pede nome,

mas ainda não é voz.

 

Como se o mundo estivesse a segurar a respiração,

no instante anterior ao gesto

que pode ou curar

ou partir.

 

Há forças que se olham de frente

sem saber se são abraço ou combate.

E há decisões que ninguém vê,

mas moldam o destino como água que escava.

 

O coração sabe

o que a mente ainda evita.

E o corpo, mesmo cansado,

reconhece o sopro do que é inevitável.

 

Por isso, se sentes o rumor no silêncio,

não o ignores.

É o tempo a dizer-te que escolhas pequenas

são sementes de futuros imensos.

 

Anda.

Devagar, mas inteiro.

O mundo precisa dos que caminham

mesmo quando tudo parece parado.

 

 

 

 

 

 

20 de abril (Poema inspirado na configuração celeste deste dia — posição dos planetas e aspetos)

 

 

Os que se sustentam

Nem tudo precisa ruir

para que o novo se instale.

Às vezes basta um deslocar de ombro,

um gesto menos bruto,

um olhar que abranda

antes de julgar.

 

Hoje, o mundo pesa

como se o chão exigisse mais firmeza

de cada passo.

Mas firme não é o que endurece,

é o que escuta o próprio peso

e o distribui com cuidado.

 

Há vontades que rugem,

querendo sair pela força.

Mas o tempo pede outra coragem:

a de conter sem reprimir,

a de agir sem atropelo,

a de esperar sem desistir.

 

Quem hoje se ergue com doçura

não é frágil.

É ponte entre o que deseja

e o que o mundo pode receber.

 

Não se trata de calar o fogo,

mas de aprender a dançá-lo

com pés bem plantados na terra.

 

E se doer,

lembra-te:

também isso é sinal

de que estás vivo

e ainda te importas.

 

 

 

 

19 de Abril de 2025 (Poema inspirado na configuração celeste deste dia — posição dos planetas e aspetos)