Amei-me em ti
sem o saber,
tão grave era esse tempo
onde o amor se confundia
com ausência de mim.
Deixei que me habitasses
sem ver os teus passos,
subtis,
desenhando-me por dentro,
nas dobras mais íntimas do sonho.
Sentia-te minha,
na verdade que me implorava,
no prazer partilhado,
no amparo como promessa
escrita a duas mãos.
E achava-te bela,
pura,
como um pequeno lírio oculto
num campo de verdes sem fim.
E eu,
quando podia,
erguia-te contra o vento,
guardava-te da chuva,
acariciava-te
como o sol acaricia
a pele inaugural da terra.
Tu dizias-te perdida,
e chamavas por mim
como ave ainda ninho,
pedindo ao regresso
o alimento do reencontro.
Recriavas-me na importância
que sonhavas eu ter,
e não respiravas
sem que te pensasse,
nem me vias
sem que te pressentisse.
E eu,
não te sabia.
Perdia-me no medo
que me moldaste com arte severa.
Tudo parecia correr
como num voto antigo,
sem tempo
senão para escutar-me em ti,
tomar-te por culpa,
e sustentar-te aos ombros
quando recusavas o chão,
frágil como criança
diante de um pai ausente.
Compreendia-te,
nas noites longas,
onde o sono era exílio
e só querias falar
de como te criaste,
não entre fadas,
mas entre sombras que te seguiam
desde o berço.
Falas-me dos animais
que tombaram nos teus bosques,
das vitórias em noites
de luas sem perdão,
não por querer,
mas como anjo submisso
a rituais de dor
dictados por um deus ausente.
Contaste-me as almas
que levaste ao inferno,
como se fosse missão santa
a fidelidade à ferida.
E disseste-me
da tua sobrevivência —
de como te vestias de força
para esconder
a fragilidade acesa
na tua sensibilidade exposta.
Sempre que te olhava,
eras luz sem mácula...
e eu desejava prolongar
esse encantamento,
convencido de que a felicidade
viria,
se não aqui,
noutro lugar
onde também estivesses,
ainda que nunca te tivesse amado.
Preferia-me assim:
só,
triste,
entregue ao desejo
que te coroava,
como se eu fosse rei
e homem.
Mas quando te quis,
não te encontrei.
Nunca foste.
E quando acordei,
eras tão pouca,
tão menor,
tão rude,
tão desfeita como o diabo.
Não há saber,
nem clemência,
nem alquimia alguma
que te restitua à vida.
Nem amor,
nem perdão
te redimem.
Desfazes-te,
lentamente,
em tudo o que tocas.
Corrói-te o azedume
de não cortares
o cordão vil
que te liga
ao ventre da que te pariu,
sem jamais confessar
com quem dormiu
para que nasceste.
És, sim,
a própria Solidão.
E ela.
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